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Gi,

Cada dia que passamos juntos, cada manhã que eu abro os olhos e você está ali do lado ressonando baixinho percebo o quão sortudo eu sou. São raros os nossos momentos juntos compartilhando a mesma mesa, o mesmo sofá, a mesma cama, tão poucos que acho que as vezes vou morrer de inanição de você. Mas talvez por isso mesmo sejam tão valiosos pra mim. Hoje, dia dos namorados, tão longe fisicamente um do outro, a saudade aperta mesmo sem a estrada ter aumentado um milímetro. Se nos quilômetros a distância é a mesma desde nosso primeiro contato, o espaço entre nós cai na unidade de medida que não se mensura, inversamente proporcional ao quadrado, ao cubo, à enésima potência do sentimento que sentimos um pelo outro. Esse desejo de estar pra sempre com você, compartilhar com você nosso futuro cantinho nesse mundo, ter um futuro em comum, contruir nossa felicidade dia a dia, bloco a bloco, beijo a beijo, não cabe em nenhuma trena do mundo.

Esterei sempre lá com você.

Te amo

Rod



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If you came here, today is valentine's day in Brasil. I'm Rodrigo and I wrote this letter for Gizelli, my beloved girlfriend, and I put that easter-egg in 30MovieChallenge banner. If you don't understand the words, let me summarize for you: I LOVE HER! :)

Lágrimas de verdade

Vou confessar algo aqui que é meio bobo: em choro em cenas de revelação da verdade. Devo isso ao legado mendeliano da minha mãe, que chora atá vendo novela. Meu pai é racional, contido, homem à antiga, responsável pelo meu meio rousseauniano. Só chorou no dia da morte da minha vó.

Não é quando fulaninha descobre que vai ser mãe, isso não me comove. É um resultado orgânico tão predizível que soa raso e sem muita surpresa. Talvez menos para os descuidados. Mas me comove a cena de uma criança abandonada por ignorância, por falta de responsabilidade, por apego a tradições cegas, por incapacidade de racionalizar cinco minutos à frente. A morte também não me impressiona, destino inexorável à toda critura, seja por acidente, por violência ou por prazo de validade. É triste não ter aquela pessoa mais ao seu lado, mas tão comum que não sei porque ela ainda é tabu. Ela só me agride quando é perpetrada pela estupidez, pela falta de senso crítico e moral.

Vida e morte, as instituições biológicas, são autômatas. Aconteceram desde sempre sem nossa intervenção. Elas só ganham matizes quando são frutos da busca por um caminho de curiosidade, de conhecimento, de descoberta, de revelação. Quando são resultado da vontade de saber. A ciência, tanto a biológica quanto a social retratada pela fotografia documental, estática ou em movimento, é o elemento de conscientização, de racionalização, de impacto, de destruição de engessamento, da tradição cega mais forte que nós já inventamos. Tão fortes que não conseguimos desviar o olhar e muito menos reproduzi-lo. Toda vez que efeito observado encontra causa descoberta, quando seus segredos naturais são revelados fruto de árduo trabalho de investigação, é hora de pálpebras lubrificadas e dutos lacrimais em ação.

William Kamkwamba me fez chorar de novo.

A Casa do Padre

Lembro da primeira vez que meu velho me levou pra cortar cabelo, tão nitidamente como se tivesse sido ontem que voltava pra casa com o pescoço pinicando e cheirando a talco barato. Tinha uns quatro ou cinco anos e estava andando na rua com minhas sandalinhas de couro. Era início da noitinha e eu estava na rua segurando a mão do meu pai, estranhando as pessoas da rua, os cheiros esquisitos e a luz avermelhada dos postes com lâmpadas de mercúrio.

A Casa do Padre era em um bequinho estreito e minúsculo onde hoje funciona uma pensão que vende comida à quilo e uma gráfica rápida, dessas que já já vão a falência. De manhã a entrada do beco era guardada por um senhor que vendia limões em saquinhos de rede amarela e fichas de telefone, com seu peculiar trec-trec, batendo ritimadamente as tiras de papel recheadas com os disquinhos de ferrite. Os azulejos cor de orkut iam até o meio da parede, sendo emboço limpo e branco (na medida do possível) até o teto. Em cima de cada cadeira tinha um circulador de ar pendurado perpendicularmente para aliviar os fregueses do calor. O ambiente parecia um bar, pois tinha pelo menos uma dúzia de pessoas por ali jogando vanja fora, contando causos e mentiras.

A fauna do habitat contava com figuras como um cabeludo moreno de bigodinho que ensaboou as longas madeixas e as deu forma de chifres compridos. Todo mundo caiu na gargalhada quando ele virou a cabeça pro pessoal com uma cara de carranca bahiana. Tinha uma mulher morena meio esquisita com os peitos enormes que um dia na juventude deveriam ter sidos espetaculares. Mas hoje estavam ali perto do beiral do umbigo, como um anão tentando ver dentro de um poço de amurada alta. Esse era o barbeiro onde o bigodudo rotundo alcunhado de eclesiástico exercia seus dotes com a tesoura e pente. Atendia no mesmo ambiente o Russo, um albino com barba e cabelos muito ruivos e muito encarapinhados, meio roliço, com beiços grossos e sempre com a boca entreaberta.

Serviço feito. Talco no pescoço. Voltamos pra casa. Não. Antes paramos em um bar para tomar guaraná.

Melão é uma fruta educada

Sempre que penso em melão penso em ingleses. Não que ingleses sejam amarelos. Ingleses SÃO ingleses. John Cleese em Silly Walk, mas sem o andar esquisito. Melão se come ordenado, cortando, fazendo cubos, tirando lascas, envolvido ternamente em presunto e deitado em berço explêndido de uma bandeja de prata. Melão se pede, que nem o Dom Lázaro. Há até os que fazem bolinhas aristocráticas do melão. Os caroços são cirurgicamente depilados para uma apresentação limpa, com colher ou mesmo uma faca. Aliás, melões em geral são comidos em um bom brunch com talheres, mas a etiqueta diz que até pode-se comer com as mãos. Pede-se a fineza de não levantar o dedinho em um ângulo de mais de 90º.

A manga é caldalosa, fiapenta, suculenta, viscosa. Come-se com as mãos, chupando, mordendo, deleitando-se em seus sucos, escorrendo caldo pelos braços, com vontade. Mas sem pressa. Tem que ter jeito pra comer uma manga e não voltar pra casa com a camisa imprestável. Manga é a forma que a natureza nos mostrou como proceder no sexo oral. Meninas, confesso, tudo o que sei é, em algum grau, graças as mangas que chupei. Manga é selvagem. Manga se deseja. E assim como as mulheres vem em vários tamanhos. Manga Espada. Cortante, ácida, pequena notável de doma difícil, paladar em assalto. Manga Rosa. Jorge Tadeu já sabia. Lasciva, do tamanho da sua fome e de casca sempre cheirosa. As papilas dão o grau da excitação, túrgidas dentro da boca, resvalando nos dentes, quando a pecaminosa fruta passa deitando seus sucos e seus cheiros no alto de seu pé frondoso.

Manga é uma fruta devassa.

Ano Novo no Bar

A chuva caía preguiçosa no Rio de Janeiro enquanto fogos e disparos subiam para os céus, numa troca injusta de fogo e água. Meus pais haviam ido passar o feriado na casa dos meus tios em Sepetiba, mas dei uma desculpa qualquer que tinha compromisso por aqui em Campo Grande. Conversa. Estava meio deprê e não queria ver ninguém, ainda mais em uma época em que todos batem taças de uma forma que soa um tanto quanto hipócrita. Mas quero falar dessa vez sobre o álcool sincero que transborda copos americanos de boteco. Os mesmos que seguram guardanapos lisos de papel vagabundo, arrumados artisticamente em forma de fractal.

Observava a contagem pela televisão enquanto vestia um jeans e botava uma camiseta branca. Estava decidido a sair, mas não sabia bem pra onde. Ao troar dos primeiros pipocos botei o pé fora de casa. Uma cacofonia de fogos, músicas e risos dentro das casas, pois a garoa deixava as ruas desertas. E eu ali, marchando pesado, sentindo o cheiro de asfalto molhado, procurando alguma coisa pra fazer. Queria ir para a casa de alguém conhecido, mas a maioria tinha viajado ou, em função de uma vida mais normal, tinham casado ou estavam nas casas dos (as) respectivos (as) namorados (as). Sobrei. E isso me chateava ainda mais. Andei por cerca de meia hora por ruas desertas margeadas por casas festivas. Já decidido a voltar pra casa, dei uma volta gigantesca para não repetir o trajeto de ida, após procurar por alguma birosca aberta e já certo que voltaria pra casa pior do que quando saí. Foi quando eu vi a luz de um bar caindo azulada na calçada.

Era um desses botecos que um dia foi padaria, com grades malhadas de óxido e cor de creme, teto de zinco, chão vermelho escuro e azulejos azuis e brancos. Como todo botequim que se preza, com alguns faltando. As mesinhas de aço enferrujadas estavam cheias de garrafas de Skol, copos, cinzeiros, cigarros e as cadeiras ocupadas por mulheres, homens e algumas crianças. Uma dezena ou mais no total, todos falando alto e alegres como manda a etiqueta suburbana carioca. Entrei e esbocei um salamaleque meio-boa-noite-meio-feliz-qualquer-coisa e fui direto pro balcão no fundo. O que parecia ser o dono atrás das estufas de vidro vazias estendeu-me a mão, já meio alto provavelmente por algumas rodadas de vinho. As rodelas roxas deixadas no vidro pelo copo provavelmente transbordado me diziam que ali estava um cara que gostava do que fazia e matava o estoque quando podia. Era um tipo branquelo, meio engordado pelo casamento. A aliança estrangulando o dedo anelar não deixava dúvidas. Parecia ser inteligente e um cara legal para se trocar idéia.

Pedi uma Brahma. Ele parou por um instante. Parecia que o pedido não era esperado, mas rapidamente deu as costas, pegou uma gelada no freezer, abriu e pôs no balcão ao lado de um copo. Desceu bem, mas meu estômago vazio reclamou um pouco da pressão súbita gasosa e gelada que engoli. Pedi outra, enquanto me acertava no banco de madeira alto. Ele a trouxe dando a volta no balcão, puxando um banco e sentando ao meu lado. Vanja vai Vanja vem, como já falava o Stanislaw, acabou explicando que o bar era dele e que todos ali eram parentes ou amigos da família. Pedi desculpas e apressei-me em pegar a carteira para pagar a dolorosa e me retirar. Ele segurou meu braço e insistiu para que ficasse. Acabei ficando após fazer um doce por mera formalidade. Ele perguntou se eu gostava de beber e eu respondi que sim. "Ótimo" ele disse, voltando para trás do bar. Botou um garrafão de 5 litros de vinho tinto suave vagabundo em cima da estufa, sacou mais dois copos e serviu. Acontece que vinho é um veneno pra mim. Passo mal horrores, mas não podia fazer desfeita. Secamos o garrafão, com goles roubados esporadicamente por algum sobrinho/cunhado, um deles era PM, conforme e cara do bar depois me contava, que vinham, puxava um papo de bêbado e depois saia para cantar no videokê.

Esqueci de falar do videokê, um dos personagens dessa história. Tinha uma daquelas máquinas com dois microfones que tocavam músicas em midi para que bêbados pudessem secar a garganta e os ouvidos da audiência. Escutei de tudo ali. De Robocop Gay dos Mamonas até o Amor e o Poder da Rosana. De Vou te Amarrar na Minha Cama das Marcianas até Réu Confesso do Tim Maia. Esse foi o naipe do pano de fundo a noite toda, com timbres masculinos, femininos e infantis se revezando, um pior que o outro. Engraçado que, apesar da qualidade técnica do elenco ali reunido as notas nunca eram baixas.

Quando voltei os olhos já meio pesados pelo vinho, ele botou uma garrafa de Martini no balcão. Bebemos o Martini enquanto gritávamos sobre política, futebol, sexo, mulheres ou qualquer outro assunto aleatório que brotasse ali. O gosto de azedume do Martini de tempos em tempos voltava por refluxo para minha boca. Pensei que ia botar pra fora ali mesmo, mas consegui chegar ao banheiro antes. Estômago vazio, voltei para as rodadas de Martini. Garrafa seca, eis que ele me traz uma garrafa de Kovak. Pra quem não conhece, essa vodca poderia muito bem ser utilizada para limpar material cirúrgico, de tão ruim que é. Descia arranhando, queimando, fazendo meu estômago embrulhar, mas não deixei a peteca cair. Tentando simular uma atenção que não tinha mais, perguntei de cada mulher no bar. Nem a esposa dele perdoei, claro que pedindo mil desculpas depois pelo imbróglio involuntário. A mistura etílica de meu estômago voltou a revirar quando a mesma trouxe um pratinho de salgadinhos esponjosos de tanto óleo. Serviu para pesar no estômago e me fazer desejar voltar pra casa o mais rápido possível. Eram umas três da matina de acordo com o relógio da parede do fundo do lado do quadro de plástico preto perfurado e suas letrinhas amarelas. Levantei, apertei a mão dele (até hoje não sei seu nome) e fui em direção da saída do bar. Sentei em uma das cadeiras depois que as grades giraram em torno de mim. Fiquei ali respirando. Bebi um resto de refrigerante de um copo de plástico olhando para o nada. Estava muito ruim, já na fase em que se promete nunca mais ingerir uma gota pelo resto da vida. Aí senti uma mão pousar na minha coxa.

Olhei pro lado e uma menina de não mais de 13 anos estava olhando para o karaokê tocando sei-lá-o-quê, o caderno de músicas engordurado à sua frente, aparentemente escolhendo o que iria cantar. Era da família do dono do bar, com certeza. Ajeitei-me na cadeira de forma que sua mão não encontrasse mais apoio e caísse pendendo pelo ombro. Olhei sem graça em volta. Ninguém parecia ter visto. Aí eu sinto a mão de novo, agora mais perto da minha virilha, meio que abrindo brecha na dobra da minha barriga. Suei gelado na hora, quando notei que o pai dela era justamente o PM, que tinha os olhos injetados de álcool e olhava pra mim. Levantei de salto, andei em direção ao videokê escutando a fanfarra que anuncia o fim da música e mostrando a pontuação de quem quer que tenha cantado por último. 98. Peguei o microfone das mãos de alguém e cantei Menino da Porteira antes de ganhar a rua, cambaleando de volta pra casa, sem nem ao menos saber quanto tinha tirado. Não foi um valor baixo, com certeza.